O
“Dia das Crianças” foi idealizado em meados de 1920, quando um deputado propôs
a ideia de uma data para homenagear os pequenos. A escolha do dia 12 de outubro
foi feita no encerramento do 3º Congresso Americano da Criança e do 1º
Congresso Brasileiro de Proteção à Infância no Rio de Janeiro em 1922. Entretanto,
podemos relativizar o “Dia das Crianças” no Brasil como uma data estratégica
para o comércio, pois a proposta só se concretizou na sociedade quando a
publicidade entrou em cena. Na década de 1960, uma parceria entre as empresas,
a saber, Brinquedos Estrela e Johnson & Johnson, criaram a Semana do Bebê Robusto. Percebendo o apelo comercial, em junho do mesmo ano, outras empresas resolveram
criar a Semana da Criança para alavancar as vendas. Depois dessa estratégia
publicitária, o “Dia das Crianças” ganhou a forma conhecida hoje.
Nessa
época envolta pelo “Dia das Crianças”, os pais fazem de tudo para agradar seus
filhos e parecem ter uma obrigação inata de presenteá-los. Eles compram
presentes caros e supérfluos, enquanto os pequenos ficam, ansiosamente, na
expectativa do que ganharão – muitas vezes presentes não compatíveis com a
realidade deles. Pensando sobre o presente verificamos que nessa injunção que se torna o presentear, todo
o “mais valor” que deveríamos repassar aos pequenos se “absolve”, proclamando
uma omissão afável à paternidade. Essa omissão, permeada de cinismo atualmente,
se transveste de obrigação e, invariavelmente, se configura em uma arma para o
marketing. Cada dia mais, esse se impõe às crianças, pois dessa forma consegue
se usufruir desse perverso mecanismo compensatório. A compensação, perante a ausência
e a falta de tempo com os filhos, obviamente, não funciona. Vivemos, então,
presos perante o paradoxo do presentear nessa “era da compensação”. Todavia, é
importante refletir: a maneira como o “indivíduo pai-mãe” se insere no meio
social é um reflexo das problemáticas apresentadas?
Os
indivíduos hoje estão inseridos em um contexto a qual um número infindável de
escolhas lhes recai. Beck e Beck-Gernsheim, em seu livro The Normal Chaos of Love (1995), “consideram que nossa era é repleta de
interesses em colisão, entre a família, o trabalho, o amor e a liberdade de
perseguir objetivos individuais.” (Beck e Beck-Gernsheim apud Giddens 2012, p. 272). Dessa forma, a
escolha dos “indivíduos pai-mãe” vincula-se à ideia dos interesses em colisão: será
que os pais trabalham para dar uma “vida digna” aos filhos, muitas vezes porque
aqueles não tiveram essa “vida digna”? Ou a paternidade para eles estaria em
uma relação de conflito com seus objetivos individuais, profissionais, sociais,
entre outros, os quais, imersos na busca da satisfação pessoal, deixam em segundo
plano as relações familiares. Nesse ponto, hoje
a “guerra entre os sexos” se torna um desafio à família. E o debate sobre a
compensação ao presentear os filhos se revigora no que tange ao sujeito. Os
pais, assim como os indivíduos na sociedade, são definidos pela sua essência,
mas estão alienados de sua existência (MARX, 2004), imersos em um ponto sem
retorno – o que se reflete na proclamação por amor que as pessoas realizam. A
individualidade e a busca incessante pela felicidade aprisionam o indivíduo em
contradições. A ideia de “amar o próximo como a si mesmo” – invocação bíblica
que contrapõe totalmente o espírito do ser contemporâneo, individual e
hedonista. Diria masoquista? (Risos) – é apenas uma forma de mitigar a
consciência. Freud relata que, por uma “imposição social para o bem da
civilização”, o homem é oprimido em suas pulsões e, dessa forma, vive em mal estar.
Diz ele:
A
patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu
ante o mundo externo se torna problemática ou os limites são traçados
incorretamente; casos em que partes do próprio corpo, e componentes da própria
vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não
pertencentes ao Eu. (2010, p. 17)
Os
pais, presos em paradoxos, arduamente devem se perguntar em algum momento até
que ponto o amor pelos filhos deve ser realizado da maneira como estão fazendo.
De alguma forma sabem que o modo como as relações familiares estão sucedendo
são suicidas. Essa asserção é claramente expressa na ideia freudiana citada,
pois toda a estrutura psicológica do “indivíduo pai-mãe” vive um mal estar. Nesse
sentido, o indivíduo clama por amor. Em que ponto estaria o amor nesse contexto?
Em
Amor Líquido (2003), o sociólogo
Zygmunt Bauman diz que as relações sociais, pautadas em uma responsabilidade
mútua, entre as partes que se relacionam, são trocadas por relações
descartáveis. Para ele, os tempos são “líquidos” e tudo muda demasiadamente
rápido. Disso resultariam, entre outras questões, a obsessão pelo corpo ideal,
o culto às celebridades, o endividamento geral, a paranóia com segurança e até
a instabilidade dos relacionamentos amorosos e familiares. É um mundo de
incertezas. Cada um por si – e o capital e a libido contra todos? (Risos). As relações familiares tornaram-se frágeis. Os pais,
priorizando objetivos pessoais em detrimento dos filhos, dificilmente sabem o presente
que as crianças querem. Já que, nesses casos, muito provavelmente os diálogos são
vazios quando acontecem. Dessa forma, o presente volta ao cerne do assunto, pois
os genitores apenas o entregam aos filhos como compensação a sua ausência. Não
brincam com eles, não conversam, não questionam. Ou seja, não se interessam
pelo pequeno ser humano, sentado ao chão sutilmente, com um presente na mão, os
olhos sorridentes, a alegria contagiante, mas, indubitavelmente, necessitando
dos pais. Isso, sobretudo, é reflexo da volatilidade e dissolução da vida,
angustiante evidência do mundo em que vivemos – conforme citado. A geladeira é ligada pela
compensação. E nesses tempos em que até os sonhos são líquidos, todo amor flui.
Raphael Rodrigues é analista de sistemas e estudante de Ciências Sociais na
Universidade de São Paulo.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt.
Amor Líquido. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. 2003
FREUD, Sigmund.
O Mal-Estar na Civilização In: Obras
Completas Vl. 18. São Paulo: Cia. das Letras. 2010
GIDDENS,
Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Penso, 2012
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São
Paulo: Boitempo, 2004